Revista Exame - Quem pode, deve pagar

MBA e especializações nas universidades públicas podem ser cobrados ou não? Se a Justiça decidir, os mais ricos no Brasil terão ainda mais privilégios

 Por Fabiane Stefano 22 abr 2017, 05h5 Link: Revista Exame

São Paulo — Na universidade federal do Rio de janeiro, a crise é visível por todos os lados: contas atrasadas, aulas postergadas por falta de infraestrutura, redução da oferta de serviços médicos à população. Com déficit de 117 milhões de reais em 2016, a quase centenária instituição de ensino depende da liberação de recursos federais para honrar os pagamentos em aberto — no dia 13 de abril, o Ministério da Educação repassou 4,7 milhões de reais para pagar bolsistas (e olha que a situação nem é tão ruim como na estadual Uerj, onde o salário dos professores está sob ameaça de corte de 30% por causa da crise financeira do governo fluminense). Mas, mesmo com dificuldades desde 2014, há uma ilha de prosperidade na UFRJ.
No prédio do Instituto Coppead, escola de negócios da federal do Rio, o dinheiro continua fluindo. Ali é ministrado o melhor MBA do Brasil, segundo o ranking da revista VOCÊ S/A, publicada pela Editora Abril. Recentemente, o curso de educação executiva do Coppead apareceu na lista dos 100 melhores do mundo do jornal britânico Financial Times. Custo anual para fazer o MBA: 75 000 reais.
Boa parte das mensalidades dos 350 alunos inscritos em diferentes programas não sai do bolso deles: 80% são pagas por seus empregadores, entre eles empresas como IBM, Coca-Cola, Siemens e Ambev. Aparentemente, todos estão satisfeitos: os alunos recebem ensino de alta qualidade, as empresas têm funcionários bem capacitados e o Coppead reforça o caixa com 6 milhões de reais por ano, metade de seu orçamento.
Mas esse equilíbrio poderá acabar de uma hora para a outra. O Supremo Tribunal Federal está para julgar uma ação que pode proibir a cobrança de cursos de especialização de universidades públicas. “Se isso for aprovado, os cursos do Coppead vão deixar de existir”, diz Vicente Ferreira, diretor do Instituto Coppead de Administração. “A universidade não tem recursos para custear esses cursos.” No final de março, uma proposta de emenda constitucional que permitiria esse tipo de cobrança foi rejeitada na Câmara dos Deputados. Eram necessários 308 votos, mas a medida recebeu 304.
Nada além de ideologia explica o que vai ser apreciado pelo STF. A Universidade Federal de Goiás tenta reverter uma decisão do Tribunal Regional Federal da 1a Região, que considerou inconstitucional a cobrança de mensalidade de um curso de pós-graduação em direito. Se a sentença for confirmada, passará a valer para todas as instituições oficiais, que treinam 189 000 pessoas por ano em cursos de pós-graduação e chegam a receber 1,3 bilhão de reais por isso.
O argumento em questão é o seguinte: nada, absolutamente nada, pode ser cobrado pelas universidades públicas sem ferir o princípio de gratuidade do ensino superior garantido pela Constituição. Cabe ao Estado — e a ninguém mais, portanto — custear desde o papel higiênico até qualquer atividade educacional nas universidades oficiais.
A realidade, porém, é menos obtusa. O embate no STF reside nos chamados cursos lato sensu, conhecidos como especializações e MBAs. Com foco em aprimorar a capacitação de quem já tem diploma e, em geral, está empregado, esses cursos diferem da graduação e dos programas de mestrado e doutorado, cuja missão é a formação acadêmica. Como não são considerados cursos regulares, eles não dependem de autorização ou reconhecimento do Ministério da Educação, não conferem diploma (apenas certificado) nem grau acadêmico. Sua oferta é condicionada à demanda dos alunos. Sendo assim, eles não se enquadrariam no princípio da gratuidade. Esse é o entendimento do MEC há um bom tempo. Em 2002, um parecer do Conselho Nacional de Educação orientava que essas instituições não somente poderiam cobrar como deveriam. Afinal, esses cursos não poderiam consumir os já parcos recursos das modalidades regulares.
O problema é que, nos últimos anos, o Ministério Público Federal moveu ações contestando a cobrança de taxas e mensalidades nos cursos de especialização. Isso ocorreu em 2012 com a Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. Na época, ali eram oferecidos 38 cursos cujas mensalidades variavam de 180 a 1 850 reais — o mais caro era o de técnica odontológica. A arrecadação chegava a 1 milhão de reais por ano, dinheiro que era usado para compra de material, contratação de professores (muitos deles de fora de Uberlândia) e manutenção predial.
A Justiça acatou o pedido do Ministério Público e, com a proibição da cobrança, a Universidade Federal de Uberlândia cancelou os cursos de especialização. Hoje, esse dinheiro faz falta. “Há um ano esperamos recursos para fazer uma reforma de 30 000 reais no prédio da Faculdade de Educação e nada”, diz Carlos Henrique de Carvalho, pró-reitor de pesquisa e pós-graduação da universidade. “Se os cursos lato sensu ainda estivessem funcionando, haveria dinheiro para isso.”
Se a decisão da Justiça for contra a cobrança desse tipo de pós, crescerá uma distorção que ocorre no ensino superior no Brasil: o gasto de dinheiro público com gente que teria condições de custear o estudo. “Pós-graduação é um investimento social regressivo na renda. Quem costuma ter renda familiar maior: quem cursa pós-graduação ou quem fica de fora dela?”, diz o economista Joel Pinheiro, colunista do aplicativo EXAME Hoje. “Ao subsidiar 100% desse custo, o Estado tira dinheiro dos mais pobres para dar aos mais ricos.” De acordo com dados oficiais, metade dos estudantes de mestrado e doutorado de instituições públicas vive em residências com renda de pelo menos três salários mínimos per capita — no caso dos estudantes da rede privada, a proporção é de 58%.
Na graduação, a parcela com renda acima de três salários mínimos per capita é de 15%, tanto na rede pública como na privada. Como não existe mágica quando o assunto é a alocação de dinheiro na educação, alguém acaba pagando a conta. Por aqui, são os ciclos iniciais de ensino. Enquanto no Brasil o investimento nos níveis fundamental e médio é de 3 800 dólares por aluno, no ensino superior chega a 13 540 dólares. Nos países ricos, a diferença é bem menor: em média, são gastos 9 000 dólares por aluno nos ciclos iniciais e 15 000 no ensino superior. “Poucos países são tão extremos nessa diferença como o Brasil”, diz Andreas Schleicher, diretor da área de educação da OCDE, o clube dos países ricos.
O financiamento da educação superior é uma discussão apaixonada no mundo todo. Países como Dinamarca e Finlândia pagam a faculdade e até subsidiam o custo de vida dos universitários. Lá, o sistema faz sentido: o ensino superior é quase universal e o sistema tributário progressivo permite que os governos recuperem em impostos os gastos com quem fez faculdade (afinal, são eles que recebem os melhores salários).
Nos Estados Unidos, boa parte das universidades é privada e mesmo as públicas cobram dos alunos. Na Universidade da Califórnia, com 238 000 alunos distribuídos em dez unidades, o pagamento de mensalidades corresponde a 12% do orçamento de 28 bilhões de dólares (a instituição ainda recebe dinheiro de fundos federais e estaduais, empresas e vendas de serviços). Uma rede de bolsas permite que os alunos sem condição financeira não fiquem de fora. A lição deveria ser simples: quem pode, paga; quem não pode, não paga. Fechar os olhos para isso só emburrece a discussão.